Crônica

Manual de desculpas esfarrapadas
Leo Cunha
Inventar desculpas pra um "para-casa" atrasado é especialidade de alunos de qualquer idade. Eu, que dou aula há alguns anos, já ouvi as histórias mais cabeludas, contadas com a cara mais lavada do mundo. E, o que é pior, engoli a maioria.
Outro dia resolvi fazer uma enquete com meus colegas professores pra montar um manual com as desculpas mais esfarrapadas que já ouvimos. O leitor pode chiar e perguntar se nós, ilustríssimos professores universitários, não tínhamos nada mais útil pra fazer, mas sinto muito, aqui vai a lista. 
1 - A culpa é de São Pedro
Essa é das desculpas mais tradicionais. A rua alagou e eu não consegui chegar na biblioteca. Ou, eu esqueci a janela aberta e o trabalho ficou encharcado. Que pena, fessor, tava lindo!
2 - A culpa é dos outros.
Outra desculpa clássica. Foi o Joãozinho que tinha que ter comprado a cartolina e não comprou, fessor! Foi a Joana que não fez a parte dela a tempo.
3 - A culpa é do computador.
Quem nunca ouviu essa frase, vai ouvir logo. O computador deu pau, a impressora ficou sem tinta, o disquete não abriu, um vírus apagou tudo. Você sabe que computador é um bicho imprevisível né, fessor? Temperamental feito ele só!
4 - A culpa é do excesso de trabalhos
Essa costuma irritar meus companheiros docentes. Não é por nada não, fessor, mas o senhor acha que a gente só tem a sua matéria? Tava assim de trabalho pra fazer, os outros eram mais urgentes.
5 - Eu não sabia que era pra hoje.
Uai, mas ninguém avisou que era pra hoje! Eu tava crente que era só semana que vem. Ô fessor, você é tão legal, dá mais um prazinho pra eu poder terminar, o trabalho já tá bem adiantado, só falta digitar, só falta revisar, só falta grampear, só falta fazer a capa.
6 - Eu não entendi direito o que era pra fazer.
Essa é das mais descaradas, e geralmente vem acompanhada de uns dois parágrafos ilegíveis. Tá vendo, fessor, eu até comecei a fazer, mas não entendi o que o senhor tava querendo. Será que dava pra explicar de novo?
7 - Minha vó morreu.
Com todas as variantes possíveis. Afinal avó são só duas, avô também. Pai, mãe, irmão é mais arriscado, porque fica fácil pro professor conferir se é verdade ou não. Se preciso, pode-se apelar para um tio distante (mas que morou com a gente muito tempo, fessor...) ou pro gatinho siamês que era quase da família (até dormia na minha cama, precisa ver que gracinha).
8 - O supercolírio.
Desculpa a ser usada apenas em casos extremos, quando as outras realmente não colam mais. Sabe o que é, fessor? Eu fui ao oculista, pinguei um colírio daqueles brabos e fiquei seis dias com a vista embaçada. Não teve jeito mesmo de fazer o trabalho, eu bem que tentei, mas estava tão cego que acabei escrevendo em cima da receita do médico.
A lista poderia continuar por muitas linhas, mas essas aí são as mais comuns. E, pra falar a verdade, de vez em quando a gente se diverte vendo a aflição do aluno, admirando sua coragem, na hora de inventar as desculpas mais caraduras do mundo. Afinal de contas, sabemos que eles ainda estão aprendendo, não têm plena noção de suas responsabilidades e não são casos perdidos.
Duro mesmo foi ter que ouvir um Presidente da República soltar cada uma dessas desculpas esfarrapadas em pleno ano de 2001, no meio da crise de energia elétrica.
“A culpa é de São Pedro”, ele começou, esquecendo que no sul e no norte a chuva tinha sido abundante e o que faltou mesmo foram transmissores para distribuir essa energia excedente para o sudeste e o nordeste.
CUNHA. Leo. Manual de desculpas esfarrapadas: casos de humor. São Paulo: FTD, 2004,p.23-26

1.     O texto é realmente um Manual? Por quê?
2.     Como o autor se posiciona em relação a estas desculpas apresentadas pelos alunos? Ele acha que são motivos reais, justos? Retire três expressões ou trechos do texto que comprovem sua resposta.
3.     Observe o trecho em destaque  no seguinte fragmento:
         8- O supercolírio.
Desculpa a ser usada apenas em casos extremos, quando as outras realmente não colam mais. Sabe o que é, fessor? Eu fui ao oculista, pinguei um colírio daqueles brabos e fiquei seis dias com a vista embaçada. Não teve jeito mesmo de fazer o trabalho, eu bem que tentei, mas estava tão cego que acabei escrevendo em cima da receita do médico.
O trecho em destaque reproduz a fala do aluno, entretanto não há elementos utilizados tradicionalmente para indicar isto como aspas, travessão, dói-pontos.
a)    Retire do texto um outro trecho em que há citações de falas dos alunos introduzidas sem aspas, dois pontos ou travessões.
b)    Quais elementos o autor utiliza para indicar ao leitor que não se trata de uma declaração ou expressão de sua autoria, mas da citação da conversa do próprio aluno?
c)    Qual o efeito que estas citações produzem no texto?
4.     Qual desculpa parece desagradar mais o autor? E os seus colegas professores?como você chegou a essa conclusão?
5.     Uma das características básicas de uma crônica é o uso de linguagem informal, como uma conversa. Procure localizar o uso de palavras ou expressões informais na exposição do autor. (Para responder esta pergunta, você não deve considerar os trechos reproduzindo as falas dos alunos.)
6.     Releia os três últimos parágrafos do texto e escolha os termos que melhor caracterizem a reação de Leo Cunha em relação às desculpas dos alunos e à desculpa do Presidente em 2001.
 amoroso – ofendido – contrariado – indulgente – intolerante – bondoso
7.     Qual das desculpas apresentadas na crônica você acha mais esfarrapada? E qual a menos esfarrapada? Por quê?
8.     Depois de apresentar oito desculpas esfarrapadas, o autor diz que “a lista poderia continuar por muitas linhas, mas essas aí são as mais comuns.” Conte uma outra desculpa que os alunos costumam dar quando não fizerem o trabalho marcado pelo professor. Você acha que esta desculpa é esfarrapada? Os professores costumam aceitá-la facilmente?
TRAVAGLIA, Luiz Carlos; ROCHA, Maura Alves de Freitas e ARRUDAFERNANDES, Vania Maria Bernardes. A Aventura da Linguagem (Língua Portuguesa) – 8º ano: manual do professor. Belo Horizonte: Dimensão,2012. p. 24-27.
Gabarito:
1.     Não, porque o texto não explica como fazer, nem traz nenhuma orientação. Ele apresenta oito desculpas frequentemente utilizadas pelos alunos para justificarem a não realização de uma tarefa marcada pelo professor.
2.      Não, ele acha que são pretextos, subterfúgios do aluno para o professor não penalizá-lo. Expressões encontradas em diversos trechos como: "Desculpas esfarrapadas"; "inventar desculpas"; "histórias mais cabeludas, contadas com a cara mais lavada do mundo".
3.      
a)    Há trechos com citação de falas de alunos sem  sinais de pontuação nas 6 primeiras desculpas, além da desculpa 8, já apresentada.
b)    Primeira pessoaeu, pinguei, acabei, consegui. /  Pronome de tratamento para se referir ao professorvocê. / Vocativofessor. /Exclamações: "Uai, mas ninguém avisou que era pra hoje!"  / Perguntas diretasNão é por nada não, fessor, mas o senhor acha que a gente só tem a sua matéria? 
c)    As desculpas parecem ser realmente ditas pelos alunos, parecem verdadeiras e isto dá mais credibilidade ao texto. Além disto, as citações tornam o texto mais agradável, com um certo humor. 
4.     A desculpa 6 - Eu não entendi direito o que era pra fazer - parece desagradar mais o narrador, pois ele a considera "uma das mais descaradas.". A desculpa 4 - A culpa é do excesso de trabalhos - desagrada muito os outros professores, segundo afirma o narrador - "irrita meus companheiros docentes".
5.     "pra um para-casa atrasado"; "as histórias mais cabeludas, contadas com a cara mais lavada do mundo"; "o leitor pode chiar"; "pra"; "pro"; "desculpas mais caraduras do mundo".
6.     Indulgente com os alunos e intolerante com o presidente.

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